Marcus Hemerly
Sobre a terra, antes da escrita e da imprensa, existiu a poesia - Neruda
Textos


TODO CÃO TEM SEU DIA
 
     Varella acorda sobressaltado, a dor lancinante na mão esquerda o desperta em razão da posição na qual havia dormido. O membro não completava todas suas funções devido a um tiro que o havia trespassado três anos antes. Além de uma cicatriz que mais assemelhava-se a uma pequena deformidade, o evento havia deixado uma dor intermitente como lembrança, aliada à leve atrofia da mão. Ele se vira e contempla Teresa, uma amiga que há muito partilhava sua cama, e de certa forma, sua vida, sem os compromissos ou cobranças de um relacionamento. Cada um fazia o que lhe aprouvesse, sem perguntas, sem respostas, mas apenas uma vertente era absoluta naquele atípico caso duradouro: não havia espaço para mentiras deliberadas.
 
          Sua linha de trabalho não permitia a convivência íntima com aqueles dos quais desconfiasse, mormente em se tratando de um detetive amador, motivo pelo qual não gozava de muitos privilégios com a força policial, mesmo sendo um ex-tira. Varella conta com seus cinquenta e cinco anos, não bem vividos, mas suportados, a mulher ao seu lado era quinze anos mais nova, de corpo rijo e formas avolumadas cujo breve relance já lhe provocava o início de uma ereção. "Não agora, meu velho", ele pensa, sentando-se ao pé da cama e olhando por uma parte da janela parcialmente descoberta pela cortina rasgada. Ainda mirando os prédios que se perdiam ao horizonte da bela capital paulista, levanta-se e se põe em direção ao chuveiro, havia acertado um trabalho para um empresário da região e devia se apressar.
 
            Enquanto a água fria corre por seu corpo magro, ele pensa no dia em que foi ferido, a bala de calibre 38 havia feito um estrago considerável ao tecido muscular e às terminações nervosas da mão. Quem diria! seria seu último dia de trabalho, sua última incursão a uma cena de homicídio, após uma década na polícia. Justamente nesse dia, o perpetrador ainda se encontrava no local do crime, escondido no banheiro do motel onde havia ocorrido o delito. Foi surpreendido com a arma já apontada para sua cabeça, restando apenas o tempo de se desviar e instintivamente proteger-se com a mão, a qual foi destroçada pela deflagração do projetil à queima-roupa. Naquela oportunidade, ainda anestesiado pelo choque, ele conseguiu desferir dois tiros, um no ombro e outro no olho direito do agressor, que segundo notícias posteriores, não foi a óbito, mas jurou vingança contra aquele que havia lhe marcado para sempre, como num Z de zorro.
 
            Após a chuveirada, ele reflete sobre a possibilidade de aposentar-se definitivamente, seus ganhos não eram grande coisa, mas havia seus investimentos. Ele podia ser um beberrão inconsequente, hábito que sempre o perseguira, principalmente após a coexistência com as dores contínuas, mas no que dizia respeito à sua tranquilidade na velhice, sempre foi precavido. Sim, a velhice, ela não estava próxima, ela o havia alcançado. Não existia nada além, nada depois disso, daquele momento. A caçada contínua, assim como a bebida e o tabaco, eram companheiros fiéis, e ele também seria fiel a eles. — Ah, foda-se!  — resmunga quase inaudivelmente ao sair do banheiro, ainda nu.
 
     — Você vai à boca do lixo?  — pergunta Teresa, fazendo referência à região do centro de São Paulo, conhecida pela vida noturna, prostituição e uso de drogas, além de palco de produções cinematográficas nas décadas de sessenta e setenta.
           
     — Sim, como lhe falei, o trabalho é levantar o histórico de uma casa de prostituição, o dono da concessionária da rua de trás tem uma irmã viciada em drogas que se afastou da família. Segundo lhe contaram, ela foi vista por lá e gostaria de alguém de fora para lhe dar uma posição — responde enquanto se veste. Normalmente, ele vai à rua com um paletó, mas pensa melhor, seria conveniente passar o mais despercebido possível. Rapidamente, ele veste uma calça e uma camisa social velhas, calçando seus sapatos.
 
     — Vou ficar aqui por mais algumas horas, se você não se importar. Não trabalho até logo mais à tarde. Cuidado Varella, a região é bem perigosa — alerta sua amiga, dirigindo-lhe um olhar preocupado e terno.
 
     — O que é isso agora, Teresa, acha que eu voltei a ter dez anos? — indaga em tom de troça, divertindo-se e, até mesmo, se alegrando pelo seu tom carinhoso. — Já fui a lugares bem piores, além do mais, o que me preocupa é a praça depois da seis horas.
     — Como assim? — ela pergunta, intrigada.
     — Ora, a quantidade de bichas que ficam por lá. Carne fresca, ou...não
tão fresca como eu... — ele responde e os dois riem alegremente — prometo que dou notícias mais tarde.

          Eles se beijam e despendem-se enquanto Varella desce pelas escadas até a parte de trás do prédio, localizado no bairro da Liberdade. Andaria alguns quarteirões até a estação de metrô, pois ele não dirige, é mais fácil cruzar a metrópole dessa forma, e além disso, pela quantidade diária de álcool que ele consome sem nunca embriagar-se, o que era um espanto, não seria recomendável que fosse parado por seus antigos colegas, principalmente quando, eventualmente, carregava uma arma sem licença para tal.
 
          O escritor e jornalista americano Hunter Thompson havia anotado em seu bilhete de suicídio ao dar um tiro na cabeça em 20 de fevereiro de 2005 "Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de caminhar. Chega de diversão. Chega de nadar. Sessenta e sete. São 17 anos além dos 50. Dezessete a mais do que eu precisava ou desejava. Chato...". Ele se perguntava se teria o mesmo fim. Sentia-se como um zumbi, um autômato que vagava dia após dia. Poucos eram os prazeres, mas alguns, às vezes, faziam tudo valer a pena.  A relação de amor e ódio com o trabalho investigativo, seja nos tempos de polícia ou como detetive particular, era uma mola propulsora para levantar-se de manhã, associado ao lapso temporal compreendido entre um gole e outro de
vodca durante o dia.

 
          Varella salta do metrô na estação da luz, ainda é cedo, ele luta contra a ideia de dar uma volta no mercado municipal para um dos famosos sanduíches de mortadela. No entanto, melhor procurar o prédio do puteiro. Após perguntar a alguns comerciantes, ele localiza um pequeno restaurante chamado por todos de "amarelinho", o motivo era desconhecido, pois a porra do prédio era verde, e ficava no térreo do palacete Matarazzo, segundo a inscrição em sua antiga fachada. A boca do lixo despertava um sentimento deprimente, mórbido, as almas atormentadas que ali se amontoavam eram protagonistas de dramas diários que jamais seriam conhecidos. Assassinatos, suicídios, overdoses, dor. Caminhar por aquelas ruas o fazia sentir uma espécie de vazio estranho. Decerto, a indiferença era a mais intensa e velada fonte de agressão. 
 
     Ele vê algumas prostitutas e travestis comendo e outras já com a fala enrolada pelo efeito de bebidas e drogas, apesar de ainda ser o primórdio da manhã. O dia seria duro e o entorpecimento para suportar os pesares da chamada “vida fácil” se iniciam precocemente. Segundo a foto mostrada por Osvaldo, seu cliente, a mulher tinha aproximados trinta anos, ruiva e de sardas no rosto. Após o que lhe pareceu uma hora sentado no estabelecimento, pajeando dois copos de whisky, o detetive é abordado por uma das mulheres, um pouco mais madura do que as outras.
 
     — Olá, tá procurando o que, bonitão? – pergunta a loira, que põe delicadamente a mão em seu ombro.
 
     — Olá, acabei de tomar uma e gostaria de relaxar um pouco mais. O que tem no seu cardápio? Quero variar um pouco, minha senhora é uma morena muito bonita, mas queria experimentar uma bela negra ou uma ruiva. — Diz Varella, atento à reação da mulher, que não parece dar muita importância às suas palavras. Ele retribui o sorriso condescendente com um carinho na mão da atraente prostituta.
 
     — É só chegar ali na recepção, tem uma ruivinha gostosa, novinha, bocetinha de mel. Diga que a Shirley o mandou. — Ela termina seu discurso e volta para o interior do restaurante, o que o faz concluir que era a cafetina, caso contrário, ela mesma teria oferecido seus serviços. Após pagar a bebida, ele adentra a recepção do hotel e restaurante Matarazzo, dirigindo-se ao homem da portaria, gordo, de bigode farto e olhar desconfiado.
 
     — Bom dia, amigo, a Shirley disse que teria uma ruiva, bem novinha. Procede?
     — Está com tesão cedo, hein, patrício! Muito bom — diz o porteiro com um leve sorriso cúmplice — a moça vai subir em alguns minutos, muito bom — repete com um forte sotaque português, ao lhe dar as chaves do quarto de número 25, indicando o andar de cima. O detetive sobe as escadas até alcançar o segundo andar, sem reparar numa face de outrora que o fita de maneira firme, por entre a porta entreaberta de um dos quartos do final do corredor.
 
          Paredes descascadas e escurecidas pela umidade permeiam o ambiente pouco iluminado, a deterioração revela os muitos anos de descaso na manutenção.  Durante a tarde e noite, os corredores seriam preenchidos por sons e gemidos nos aposentos, mas as putas estavam em período de descanso, ao menos, algumas delas.  Adentrando o quarto 25, revela-se praticamente o mesmo ambiente do corredor, modesto, sem ventilação e forte cheiro do mofo e odores corporais. Sentando-se na cama, ele reflete por alguns minutos o que dizer para a irmã de seu cliente.  Ele não pode levá-la a força, além do mais, dependendo da intensidade de seu vício, sem o tratamento adequado, seria apenas uma questão de tempo até que ela retornasse às ruas.
 
          A porta se abre e antes que ele possa se dar conta, não é de uma jovem a silhueta que cruza os umbrais, mas um homem negro forte, com uma cicatriz profunda no olho direito, segurando um revólver 32. Ele não tem tempo o suficiente para esquivar-se do primeiro tiro, que passa a poucos centímetros de sua face, mas enquanto se arremessa de encontro ao corpo do outro homem, Varella reconhece o rosto que há anos atentara contra sua vida em seu último dia na força policial.
 
     — Filho da puta — grita o detetive, agarrando a mão que segurava a arma enquanto lutam pela posse do artefato. Ele a havia agarrado com a mão defeituosa e antecipava o momento em que não mais conseguiria aguentar a pressão exercida sobre seu metacarpo. O coração acelera, por mais durão que alguém possa ser, não é como nos filmes, em que um olhar frio é suficiente em uma situação de estresse na qual a morte é uma possibilidade quase palpável. Contudo, as batidas de seu coração repetem-se velozmente em razão do esforço, mas ele se impressiona com a sua tranquilidade. Uma vez, ele havia refletido se teria medo de morrer, ou até mesmo se detinha a capacidade de ele próprio encerrar sua existência. Ominosamente, a resposta era "não" à primeira pergunta e "sim" para a segunda.
 
          Enquanto os dois homens envolvem o revólver com as mãos, Varella desfere um poderoso golpe com o joelho contra a virilha de seu oponente; ao tempo em que o homem negro arqueja em busca de ar, outro tiro é disparado e se aloja na porta do guarda-roupas. Varella o atinge com uma cabeçada, rompendo o osso nasal e o sangue esguicha desbragadamente sobre sua camisa. Mais uma, e a terceira, até que o agressor perde os sentidos e o detetive já um pouco arfante, é o único detentor da peça que há poucos momentos quase fez com que o homem terminasse o serviço de três anos atrás. Ao revés, ele mesmo terminaria um serviço inacabado. Improvisando uma corda com os lençóis que encontra em uma das gavetas, amarra o homem desfalecido a um pesado móvel antigo junto à cama e pede a uma das mulheres que se aproximava da porta, para chamar a polícia. De alguma forma, aquele cretino estava solto, como ele havia escapado à justiça era uma incógnita, mas Varella tinha certeza para onde ele iria agora.
 
***
 
          No final da tarde, ele adentra seu pequeno apartamento, deambulando fracamente, pois havia ferido a coxa durante a luta, e se deixa cair no sofá enquanto olha pela janela. As perguntas na delegacia haviam lhe testado a já limitada paciência. Sentado em sua sala, ele pensa em quantas vezes já se prostrara naquela posição durante os anos ali vividos.  A cidade nunca perdera o fascínio para ele, a multidão de vidas e histórias se confundiam com a sua própria. Uma mensagem é reproduzida em seu aparelho de telefone sobre a mesa. “Vamos sair para jantar?” era o que dizia a mensagem de Teresa. Com um leve sorriso ele pensa que, sim, existem coisas pelas quais vale a pena acordar de manhã. Procurando uma garrafa que se encontrava sempre ao lado do móvel, ele toma um gole do líquido forte, para então, assim como na famosa citação de Kafka, sentir-se novamente incluído no círculo dos homens.



 
Marcus Hemerly
Enviado por Marcus Hemerly em 14/08/2019
Alterado em 31/03/2020
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