Marcus Hemerly
Sobre a terra, antes da escrita e da imprensa, existiu a poesia - Neruda
Textos
HAPPY HALLOWEEN
 
 
     Laura abre os olhos após o que parecia um pesadelo, um sonho ruim como outro qualquer. Sua mente tenta resistir à claridade que trespassava as cortinas do aposento branco, como alguém que tenta resistir ao sono que envolve a mente de forma, sedutora, ou a bruma espessa numa noite de inverno. Ela consegue finalmente abrir os olhos e se dá conta de que se encontra no aposento de um hospital, um quarto aparentemente simples, até mesmo ultrapassado, nada do que se espera guarnecer as dependências de um nosocômio, que deveria ser limpo e esterilizado.
 
     A última coisa de que ela se lembra é do jantar partilhado com o namorado, sem saber precisar há quanto tempo aquilo havia acontecido. Uma noite regada a bom vinho, massa e sexo carinhoso, após assistirem a filmes de terror, comemorando o Halloween.  Uma maratona animada de O Massacre da Serra Elétrica 1, 2 e 3, mais sexo e mais juras de melhoria no relacionamento. Nattan, com quem dividia o apartamento há um ano, não era mais quem parecia ser no início da união. Um comportamento possessivo e agressivo dava sua mostra diária, como que se fosse revelado em pequenas doses, o resultado pareceria indolor, tanto ao corpo quanto à mente. A derradeira taça de vinho  parecia com gosto estranho, mas ela bebeu assim mesmo, achando que poderia ser pelo fato de estar ligeiramente embriagada. A aura do dia das bruxas havia conquistado o casal após brincadeiras de gostosuras ou travessuras entre si, misturadas a risos contidos, como segredos trocados pelos amantes. Ela fechava os olhos novamente, alternando entre a consciência e o estado nebuloso dos sonhos. Abrindo-os na sequência, percebe que se encontra agora sentada no sofá de sua sala de estar, “graças a Deus”, estava segura em sua casa, apenas sobressaltada pensando em como um drink faria bem naquele momento. Laura se levanta e grita pelo nome do namorado.

    - Nattan! É você? responde, seu puto!. Detesto essas brincadeiras – assopra as palavras em tom ríspido, mas não afastado de um medo sem razão aparente. A mulher se levanta e encaminha-se para o banheiro  a procura de um analgésico, havia uma pontada incômoda que não cessava na lateral de suas costas. No entanto, as passadas vão ficando cada vez mais pesadas, como se uma bola de cimento estivesse amarrada a seus pés. Na mesma medida, sua vista se desfoca até que uma  dor lancinante do lado direito do corpo a desperta.

 
     Retornando ao quarto do hospital, percebe  que  aquilo  não havia sido um sonho afinal de contas, apenas quanto a parte na qual se viu de volta a  seu apartamento. Ela leva a mão às costas e sente uma sutura ainda úmida em cima da região renal, quando em pavor crescente, murmura um trêmulo  “mas o que...” e a porta se abre.
 
        - Olá,  bela adormecida! não tenho tempo para explicações, eu iria dar no pé agora, então, sinta-se feliz que ao menos estou aqui para um adiós final, pelos velhos tempos, como falam por aí – diz o homem que por inúmeras vezes havia partilhado sua cama, seu interior, sua vida, enquanto Laura se recusava a acreditar no que estava acontecendo. Como uma brincadeira de mal gosto, que se mostrava imperdoável, ele continua sua dita explicação.
 
     - Bem, foi um baita dinheirão que esses paraguaios me pagaram pelo seu rim, daí o motivo do espanhol, me desculpe, ainda estou por demais entusiasmado. É uma caralhada de dinheiro – depois de dizer estas últimas palavras, ele desvia o olhar por alguns  instantes, retomando em seguida,  sua fala em tom de epílogo – Tenho de ir, não se preocupe, logo estará tudo acabado, eles virão em pouco tempo pelo seu outro rim, afinal, é sempre melhor sem testemunhas, não é assim?
 
          Ele se curva e a beija na testa, ela pode sentir pela última vez o cheiro de tabaco que brotava de seus lábios, o odor que ela aprendera a deixar de odiar com o passar dos meses.  Ela sentiria aquele cheiro em sua mente, por mais alguns minutos até voltar a desfalecer, após ter ouvido bem ao lado de seus ouvidos, “happy halloween, assim como em um filme de terror”, na voz grossa típica dos fumantes inveterados como Nattan. Será que acordaria novamente desse novo pesadelo...?, foi seu último pensamento antes do alentador sono eterno sem sonhos.
Marcus Hemerly
Enviado por Marcus Hemerly em 15/10/2019
Alterado em 15/10/2019
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