Memórias Secretas de Um Verão

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Memórias Secretas de Um Verão

Aquele verão descortinava promessas inéditas, ao menos era o que esperava o garoto magro de feição soturna que se posicionava no banco de trás do Volkswagen dirigido por seu pai. Sua mãe, bela morena de meia-idade, ladeava o patriarca no banco da frente, trocando carícias sutis enquanto o motorista tecia comentários sobre as condições das estradas e os planos para o restante do dia ao chegarem à casa de veraneio. O balneário desencadeava lembranças nebulosas; seu pai havia enfartado enquanto escutava um jogo de futebol pelo rádio, numa tarde quente em meados de janeiro de 1963, há exatos três anos. O acontecimento havia sido um choque, principalmente para a mente de um pré-adolescente, afinal, um pai atlético na faixa dos quarenta não era a vítima mais provável para um ataque cardíaco. Contudo, eles haviam superado, era a primeira vez que retornavam ao local referido pelos habitantes como, “logo ali”, ou "mais adiante".

A paisagem característica do litoral sempre havia encantado aquele jovem que encontrava a paz em meio ao areal, ao vento fresco e nos mundos portáteis contidos em seus livros, nos quais ele mergulhava como numa imersão no próprio oceano, que abria seus braços como um amor receptivo. Sua segunda paixão era a fotografia, sempre que lhe sobrava dinheiro da mesada, que basicamente era gasta com brochuras, material de desenho e filmes para revelação, sua velha kodak era companheira fiel, e responsável pelo aguçamento de sua sensibilidade. Assim como um pintor contempla a imagem estática que será reproduzida, é necessário aguardar o momento exato para acionar o obturador, a luz adequada, a passagem das mais belas nuvens, e porque não...do sentimento ideal. Ele julgava que os sentimentos eram transferidos à película, pois a lente da câmera tinha a magia de eternizar imagens, momentos, e momentos nada seriam - apenas o transcorrer de um lapso temporal inócuo - se destituídos do "sentir", mesmo em horas de medo e pesar.

Naquele início de verão, as nuvens negras que cobriam o céu cinzento eram o prenúncio da chuva, e a frente fria que ali se estagnava fazia com que uma brisa gélida penetrasse o veículo enquanto o motorista o estacionava em frente à casa branca localizada a beira-mar. Um deque se estendia da varanda até a água, a qual havia sido palco de inúmeros churrascos e recepções da família no desenrolar dos anos. Após todos deixarem o carro, o rapaz dirige-se aos pais.

- Vou dar uma caminhada, quem sabe ver se Juan está a fim de jogar peteca.
- Não vai encontrar ninguém, os Álvares se mudaram de volta para o México há alguns meses, eu lhe falei, não se lembra? – indaga o pai, cerrando a porta do bagageiro.
- O senhor não me disse nada – replica o jovem, ainda desconcertado pela notícia de que passaria as próximas semanas sozinho, sendo Juan seu único conhecido naquela comunidade.
- Eu falei, mas você devia estar perdido em seus fones de ouvido, ou lendo, como sempre. Pode ir, mas depois você irá me ajudar a descarregar o carro, vou entrar com as provisões perecíveis, mais tarde você retira o resto, ok, homenzinho?
- Ok, até mais tarde.
- Não fique aborrecido, vocês poderão trocar cartas e quando eles retornarem a passeio, combinem algo. Não vá muito longe, está armando um baita temporal, e esfriando também. – adverte o homem de meia-idade e corpo bem conservado, salvo por uma leve barriga de cerveja, que ele insistia em, diplomaticamente, chamar de “protuberância abdominal”, o que sempre arrancava gargalhadas de todos. Ele amava seu pai, gostaria de um dia poder verbalizar isso, mas ele sabia que não conseguiria.

Após um aceno de cabeça, o rapaz se põe a caminhar pela areia úmida de salpicos de água salgada. Com as mãos nos bolsos de seu moletom, perde-se em pensamentos; decorrido um tempo, que poderia ser alguns minutos ou uma hora, ele se vê em frente à antiga casa dos Álvares, uma edificação mais simples que a de sua família, mas de um charme único dentre às residências de veraneio no pequeno vilarejo. Ao que parecia, a casa está habitada. Avista duas silhuetas ao largo da varanda em frente à casa que mais se parece um chalé, feita de madeira envelhecida e corrimãos baixos.

Alguns segundos se passam até que de forma impulsiva, ele se esconde atrás de uma duna e pedras que se desdobrava por boa parte do terreno, sem poder explicar o motivo de sua reação. Agora, apenas a mais jovem das duas mulheres aparece. Possivelmente seriam mãe e filha. Dizem que os sicilianos, povo passional, assim como os bascos, vivem pela inspiração da vendeta ou pelo amor. Se amam ou odeiam é para toda a vida, e se costuma dizer que o momento do amor à primeira vista, pode ser notado por qualquer pessoa, como se o amoriscado fosse atingido por um raio, per un fulmine, na língua de Dante. Ele podia entender isso naquele momento. A moça, loira, alta e esguia, ele podia ver, trajava uma roupa de dança, as sapatilhas eram já bem usadas e ainda sob a luz desbotada do entardecer, seus olhos delineados por uma maquiagem discreta, eram simplesmente hipnotizantes. O rapaz é despertado de sua muda contemplação quando a loira que se encontrava repousando em uma cadeira de vime, se levanta e dirige-se para o interior da morada. Com um furor de decepção, ele irrompe de seu esconderijo atrás da duna e retorna pelo caminho até sua casa. Os contornos firmes do corpo da bailarina foram impressos em seu cérebro como que a ferro em brasa, mas o detalhe que não havia lhe escapado, apesar de tê-lo mirado apenas por alguns segundos, era a tatuagem de um ramo do que pareciam ser cerejas, que se mostrava ornando seus ombros até o meio de seu alvo busto.

Nos dias vindouros, o rapaz refez os passos daquela trilha que havia lhe revelado um achado, como um pote de ouro ao final do arco-íris, terminando suas tardes a admirar o treino e os movimentos angelicais daquela figura que permanecia como uma incógnita que ele não ousava decifrar, apesar da vontade fremente e sufocante. Ao longe, ele observava os movimentos esvoaçantes; as pernas rijas, em sua mente, transmudavam-se em pássaros que trespassavam as flores abaixo da pequena ponte que circundava o quintal, as quais se curvavam respeitosas a algo que lhes equiparava e até mesmo suplantava em beleza. Um esboço de ereção culpada, faz sua fronte enrubescer enquanto ele projetava sua câmera em direção ao pássaro corporificado diante de seus olhos, ainda que distante, captando o rodear de uma passo de dança perfeito e harmonioso.

Antes de dormir, as lembranças do rosto sério e compenetrado da bailarina enquanto empreendia os movimentos clássicos de jeté e arabesque, não desvaneciam. Por repetidas vezes, ele fantasiaria com suas piruetas, projetando que a bela jovem dançava para ele, a beleza dos gestos como um presente ao olhar atento e dedicado dos admiradores secretos. Ele nunca saberia que a jovem o havia visto desde o primeiro "encontro" e dançava para ele desde então, igualmente tocada por seu olhar mesmerizado e encantado, mas tímida demais para intentar um contato, senão pelo momento liberto no qual se entregava à dança. Aos rodopios, ela era quem gostaria de ser, o que gostaria de ser, uma rainha do mundo ao mesmo tempo que indiferente ao resto do mundo. Naqueles breves instantes, ela era livre. No caminho de volta para casa, observando as ondas quebrando sobre a amurada de pedra que ladeava a estrada, o amante fotógrafo amador se perguntava qual seria o nome da moça de cabelos dourados, que por um considerável tempo ainda povoaria suas lembranças, sem saber que ela fazia o mesmo naquele momento. Todavia, existia uma diferença, ele guardaria uma fotografia em preto e branco, que em sua mente, para sempre seria reconstruída em cores vivazes, imortalizada pela captura de um apaixonado rom de jam...

Marcus Hemerly

Enviado por Marcus Hemerly em 17/01/2020

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