Marcus Hemerly
Sobre a terra, antes da escrita e da imprensa, existiu a poesia - Neruda
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Em algum lugar no Pará.
 
     O primeiro relato havia sido transmitido por um bêbado correndo de suas próprias ilusões oriundas do álcool, ao menos, era o que seus ouvintes desconfiados pensaram. O velho Jeremias, religioso que havia encontrado Deus na cachaça e lá vinha colhendo seus sermões desde então, chegara à venda da colônia de pescadores em estado quase alucinado. Berrava e apontava para o céu, gritando que havia visto um avião logo acima de sua cabeça, uma aeronave em formato de prato da qual emanavam luzes ofuscantes, e que dois seres altos e cinzentos lhe haviam disparado uma luz que ardia.

      Fugindo da beira do riacho, ele havia se colocado o mais longe possível de seus agressores e procurado abrigo junto à incrédula plateia. Alguns meses depois, o velho seria diagnosticado com câncer, após estranhas feridas brotarem de sua pele nos locais atingidos pelas luzes. A colônia de pesca localizada nos confins do Pará tinha as feições como que de um país distinto, com suas regras e costumes próprios, muito similar a uma comunidade indígena reclusa. Levaria um longo tempo de aparições das estranhas máquinas voadoras e várias crianças, e até mesmo adultos apavorados, para que os mais velhos do povoado decidissem por noticiar os eventos às autoridades na capital.

      Os primeiros membros da FAB chegaram em veículos não oficiais que pareciam carros de passeio ao olhar mais desatento, e como turistas, os homens à paisana haviam feito perguntas aos moradores acerca das ocorrências, que se faziam mais frequentes naqueles dias correntes. Após conduzirem uma centena de horas em entrevistas, os forasteiros que depois se apresentariam como integrantes da Força Aérea e do Exército Nacional, foram seguidos por uma dezena de outros militares que praticamente instalaram uma base na localidade. Os encontros com as naves eram noticiados diariamente, mas o medo não feneceu apesar da frequência com que os óvnis eram avistados. Tratava-se do auge da ditadura militar em terras tupiniquins e a imprensa era mais facilmente controlada, com uma pequena ajuda do setor de contrainteligência militar alimentando os pasquins locais com desinformação. Afinal, na guerra, ainda que fria contra o comunismo, não se deveria descartar a possibilidade de uma invasão ou o teste em terras estrangeiras de novas tecnologias soviéticas.

     Em uma noite, alguns militares trafegavam por um caminho inóspito entre a vegetação característica daquelas paragens, quando uma aeronave em formato de charuto planou pelo alto de uma montanha. Luzes em florão irradiavam-se como um caleidoscópio, ao mesmo tempo sedutor e aterrorizante, ao passo que a nave em segundos se distanciou fazendo com que os experimentados soldados tivessem a certeza de que eram testemunhas de algo, definitivamente, não oriundo do planeta terra. Retornando ao improvisado quartel-general, uma ligação foi feita para Brasília.

     A população foi momentaneamente convencida de que se tratavam de protótipos de aviões especiais. Em situações tais, se espalhavam falsas informações plantadas na imprensa, subornos eram trocados de mãos, e até mesmo, altos executivos do escalão das emissoras de televisão e rádio eram agentes contratados, fixos nas folhas de pagamento das engrenagens dos serviços de inteligência. Informações e especulações acerca da existência de vida espacial era tópico popular, mormente com a notoriedade do caso Roswell, a suposta queda de um óvni no Novo México, que teria alimentado inúmeras teorias da conspiração, além dos estranhos relatos atinentes à área 51, ambos os casos em território norte-americano.
No alto-comando da FAB, a ordem já havia sido instrumentalizada.

     Era conhecimento comum que alguns integrantes das forças armadas haviam travado contato direto com os seres visitantes, cenário que se tornava vertiginosamente mais perigoso às autoridades, sem o devido protocolo de contensão de informação. Se algo vazasse à imprensa, seria um estardalhaço, decerto, parte dela poderia ser controlada, mas imperioso ponderar, apenas parte dela. Assim como Orson Welles havia conseguido fazer em sua interpretação radialística de “A guerra dos Mundos” de H.G Wells, poderia se enfrentar um quadro de pânico institucionalizado, e tudo explodiria nas mãos dos militares, algo potencialmente ominoso em tempos de coexistência pacífica entre oriente e ocidente. Passariam décadas até a criação de uma agência de inteligência civil vinculada à fiscalização do congresso; com a extinção do Serviço Federal de Informações e Contrainformação, criado após a segunda guerra, o Serviço Nacional e Informações (SNI), trabalhava de forma coligada ao governo militar.

 
     Uma reunião foi convocada numa chuvosa e abafada noite de março na sede daquele órgão, entre o diretor de inteligência, o chefe da sessão de operações e dois capitães do exército brasileiro que haviam trabalhado diretamente na operação em solo paraense. Quando algo assim acontece, naturalmente decisões importantes são tomadas.

 
Em algum lugar em Brasília.
 
     A sala de reuniões era decorada de maneira sóbria, os móveis antigos e a extensa coleção de livros nas paredes, englobando desde compêndios militares, geografia, história e línguas estrangeiras, emprestavam ao ambiente um ar de academicidade similar a um gabinete de reitoria. O diretor do SNI, General Baldarate Sales Gomes, sentava de um lado da mesa de reuniões, ao lado do chefe de sessão Major Afonso Rodrigues Herkenhoff. Na outra extremidade, os dois capitães prestavam atenção ao discurso do diretor, conhecido pela astuciosa inteligência e também pela frieza na tomada de decisões.
     — Senhores, como sabem, esse assunto está se tornando cada vez mais delicado no quesito confidencialidade. Dentro do quadro militar não será problema, e os civis daquele fim de mundo são ignorantes, facilmente controlados. O lugar já foi isolado e o acesso pela imprensa é quase inviável. No plano geral, não existem grandes preocupações – após uma pausa, ele joga uma carta em cima da mesa, completando – a não ser por isso.  A carta repousa ao lado do dossiê do Coronel Leonardo Skarsgard, já distribuído aos presentes, antes da reunião.
     Eles tem sua atenção desviada para a estranha figura que se mantinha afastada, encostada à janela, um homem de meia idade que trajava um terno preto, com certeza não era militar e não parecia brasileiro. Fumava desbragadamente cigarros Carlton, acendendo o seguinte no que restara do anterior e mantendo seu olhar ao longe, mas eles sabiam, com os ouvidos totalmente voltados à conversa que se desenvolvia. Não era facilmente aferível se ele entendia completamente o que era dito, ante ao semblante impassível. Quando os capitães Hélio e Cabral adentraram o recinto, ele havia respondido sua saudação com um leve aceno de cabeça. CIA? FBI? Pentágono? A Indagação certamente ecoaria sem resposta enquanto sua atenção retornava ao Diretor Baldarate, que recitava o conteúdo da carta, memorizado, após inúmeras leituras angustiantes.
     — "Meu amigo, os viajantes galácticos me visitam à noite, por inúmeras vezes, fui seu convidado para uma viagem pelas engrenagens das estrelas e da poeira lunar. Meus amistosos e enigmáticos anfitriões me brindaram com um vislumbre do futuro, no qual homens e máquinas não apenas vivem em completude, mas são indissociáveis. Devemos, pelo bem da sobrevivência e aprimoramento de nossa própria espécie, desenvolver esse futuro aqui na terra com a ajuda deles. Meus amigos verdes, muitas vezes coloridos, amiúde transmorfos e que falam sem emitir sons, dizem que é preciso revelar sua presença à população de todo o mundo, não somente ao Brasil”.
Após alguns minutos de silêncio constrangido, Baldarate comenta.
     — Completamente louco, um verdadeiro desperdício de uma mente brilhante. Sabiam que ele era físico antes de entrar para a academia de oficiais? — Pergunta, em tom ansioso e sofrido.
 Sem esperar resposta, o diretor acena para o Major Herkenhoff, para o sancionamento oficial da operação de queima de arquivo. O oficial, então, se pronuncia.
      — Bom, sei que se trata de uma tarefa da qual os senhores não se desincumbirão com alegria, um irmão de armas, um superior, mas o coronel infelizmente se tornou um perigo não apenas ao exército, mas à segurança nacional, e é exatamente para defendê-la que nós dedicamos nossas carreiras. Não é assim?  — Indaga aos apreensivos ouvintes, como buscando ajuda para convencer a si próprio.
  — Sim, senhor! — Respondem em uníssono os capitães componentes de seu staff de elite.
     — Muito bem, os senhores estão cientes das ordens. Executem o mais rápido possível e façam parecer suicídio, considerando as recentes declarações do coronel e seu histórico com a bebida, a versão oficial será facilmente aceita. Dispensados! — Diz o chefe de sessão aos subordinados, lançando ainda um olhar ao visitante de preto, o qual acena positivamente e apaga o cigarro no cinzeiro, deixando calmamente a sala, em seguida.
O comando incumbido da ação letal se retira após as saudações protocolares e os oficiais da agência trocam uma expressão pesarosa que dispensava diálogo. "sim era um negócio sujo, e sempre seria desta forma nas engrenagens das ditas "artes negras", nos bastidores – ou submundo – do poder".

***
 
        O homem dorme na rede ao lado de fora da maloca rudimentar, livros sobre ciência política, literatura fantástica e poesia, repousam no chão ao lado de sua pistola de serviço. Seu treinamento faz com que perceba a aproximação iminente, e abrindo os olhos, pergunta num olhar vidrado. — São vocês, é chegada a hora? — Diz o alvo ao notar que sua colt não mais se encontrava ao alcance das mãos.
      — Sim, coronel, é chegada a hora. Lamento! — Sentencia uma voz hesitante, protegida pela escuridão, antes de o agente deflagrar um projetil na têmpora do militar superior, colocando, sem seguida, a peça nas mãos do cadáver. A ação não durara um minuto, não seria necessária uma equipe de remoção, a tese de suicídio deveria ser explorada e o corpo encontrado nas primeiras horas da manhã. Ainda contemplando o cenário nada agradável, o executor se apruma em uma continência fúnebre de respeito.

 
Marcus Hemerly
Enviado por Marcus Hemerly em 21/01/2020
Alterado em 27/01/2021
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