A MALDIÇÃO DO ANHANGABAÚ: CHAMAS ETERNAS DO JOELMA.
No dia 1º de fevereiro de 1974, o edifício Joelma queimou por mais de cinco horas devido a um curto-circuito em um dos aparelhos de ar-condicionado localizados no 12º andar. Até aquela época, não se realizava uma efetiva fiscalização de segurança e dispositivos anti-incêndio nos prédios, e no arrojado edifício de salas de escritório localizado no centro da capital paulista não era diferente. Por volta das oito horas da manhã, o que se relevou indulgentemente em um primeiro momento, como um incêndio de pequenas proporções, resultou na morte de mais de 187 pessoas e centenas de feridos, muitos deles, saltando do prédio diante de observadores incrédulos da tragédia e do cenário dantesco que se reproduzia diante de seus olhos.
Aquele seria o dia em que não apenas o centro da bela São Paulo pararia, mas a cidade inteira; um primórdio de sexta-feira aparentemente como outra qualquer, na qual os trabalhadores fatigados dos pesares da jornada, anseiam pelo repouso e diversão do final de semana. Um dia iniciado com tais prospectos, que seriam ceifados de maneira quase surreal, dissipados pelas chamas, fumaça e desespero. Anos antes, um professor de química havia matado sua mãe e irmãs naquele mesmo endereço, onde em 1948, havia uma casa, página da história paulistana conhecida como “o crime do poço”, o qual daria início a uma sucessão de eventos no solo batizado como vale do Anhangabaú.
Mais de quarenta anos após o incêndio, funcionários e frequentadores do prédio atualmente chamada de “Edifício Praça de Bandeira” afirmam ferrenhamente, e sem medo de serem expostos à incredulidade jocosa dos céticos, que o lugar é mal assombrado. Numa noite de tédio, se é que o tédio poderia povoar o estado de espírito até mesmo dos mais valentes em meio àquele ambiente, dois funcionários conversavam no saguão de entrada da edificação.
— Nem fodendo eu teria coragem de morar na garagem como aquele cara que apareceu na televisão, quando fizeram a reportagem especial sobre o prédio. Já basta ficar lá de madrugada sozinho — diz Joaquim, vigia que cuida da ala de estacionamentos, dirigindo-se a Marcelo, o porteiro da noite.
Os dois homens se lamentavam pelo destino que os fizera aceitar um trabalho em um lugar com a pecha de mal assombrado, mas afinal, eles precisavam sobreviver. Nos poucos meses em que Marcelo e Joaquim estavam lotados naquele endereço, ouviram histórias de alguns dos funcionários mais antigos durante a mudança de turno, relatos alarmantes o suficiente para lhes causar ressalvas quando adentravam aqueles umbrais. No turno da madrugada, eles evitavam ficar separados, apesar das instruções de que cada funcionário deveria vigiar seu setor.
As histórias dos moradores da região, jornalistas, estudiosos de parapsicologia e radiestesia, davam conta da poderosa sensação estranha sentida quando nas imediações do prédio amaldiçoado. Muitos explicavam que episódios de sudorese, mal estar, calafrios e outras reações corporais, seriam, tão somente, a somatização de medos decorrentes do conhecimento prévio do que havia ali acontecido, décadas antes. No entanto, os mais sábios, ou mais tolos, tinham a ciência de que a energia que envolvia o edifício como uma teia, era mais do que uma aura de lembranças ruins e inofensivas. O que restara, era, na verdade, a materialização do horror e sofrimento capazes de ultrapassar as barreiras do tempo, realidade e da metafísica.
— Marcelo, acho que é melhor eu voltar para a garagem, eles podem olhar nas gravações das câmeras e nos ver aqui de papo furado. Essa é sua zona de trabalho, eu não deveria ficar aqui tanto tempo — pontua o vigilante noturno, enquanto concentra uma olhadela na rua um tanto quanto deserta, em meio à quarentena imposta pelo governo durante a pandemia de COVID-19.
— Deixa disso, fique mais um pouco. Não tem nada de valor para você vigiar lá, mané! Nada acontece por aqui, principalmente agora nesse marasmo da quarentena. Vamos comer a torta que eu trouxe. — sugere o porteiro, enquanto abre uma lata de refrigerante. — Porra...!
— O que foi? — pergunta Joaquim, de modo sempre alarmado.
— Peguei os refrigerantes e esqueci da torta — explica, olhando em volta — poxa, Marcelo, pegue lá na geladeira para nós, em caso de uma urgência e tocar o telefone eu deveria atender e não você. — Pede o porteiro ao companheiro.
Marcelo hesita por alguns segundos, e a fim de evitar que o outro homem percebesse seu receio, ele responde prontamente, com um pouco mais de entusiasmo do que seria necessário. — Claro. Está na geladeira do refeitório, certo?
— Não, aquela deu defeito, coloquei na outra, naquela do sala de reuniões. — responde Joaquim.
O vigia da garagem se desloca até o elevador, mas para durante alguns instantes. Bem ali, próximo da meia-noite, o que seria pior, ele pensa, ficar preso no elevador – medo que sempre o acompanhara – ou usar as escadas desertas? Após mais uns momentos de reflexão olhando para o saguão imponente, ele decide tomar as escadas. Seu modo de deambular é característico, passos pesados devido à sua figura robusta e desajeitada, que anunciavam sua presença de maneira peculiar, uma espécie constante de barulho similar a um toc..toc...toc...
Cruzando as escadas, após o acionar automático das luzes, ele não pode deixar de notar que naquele nicho, o frio sempre intenso em outras partes do prédio, também podia ser detectado. Mesmo durante o verão e primavera, ainda que a cidade apresentasse variações de temperatura, o frio mesmo sem a refrigeração estava sempre presente. Subindo os degraus, um arrepio se irradia de sua nuca até o centro do couro cabeludo, como uma mão gélida que lhe acariciasse a pele, sedutoramente. Sem ousar olhar para trás, Joaquim acelera a subida temendo dirigir seu campo de visão para a parte superior da escadaria, ou mesmo, para as paredes, antevendo a possibilidade de distinguir alguma silhueta que não a sua.
Alcançando seu destino, o longo corredor fazia com que a sensação de estreiteza se intensificasse num ritmo lento e claustrofóbico, percepção da qual irrompiam feixes muitas vezes ofuscantes do discernimento entre realidade e o medo projetado. O vigia se convence a percorrer o restante dos metros até a sala de reuniões pouco utilizada naquele andar. Mais alguns minutos e ele estaria na companhia do colega de trabalho, deliciando-se com uma torta, na claridade convidativa da portaria. Uma janela aparentemente fechada emite o característico som quando se força algo emperrado, fenômeno incomum para uma noite sem ventos. Mais do que ouvir o sussurro, Joaquim sente algo próximo a uma respiração ao pé de seus ouvidos, o qual ele pode reconhecer como um “me ajude”, entoado ao mesmo tempo docemente mas com uma carga de ressentimento inquestionável.
***
No andar térreo, estranhando a demora do colega, Marcelo resolve espiar as imagens das câmeras de segurança do andar no qual o vigia deveria estar. Encontrando a câmera exata, ele fita a tela do monitor petrificado. Também experimentando o forte arrepio vivenciado pelo amigo, ele percebe uma segunda figura na imagem projetada à sua frente. Uma mulher cujas formas são claramente distinguíveis, aparece logo atrás do vigilante, que se vira lentamente, como pressentindo a companhia secreta.
— Mas que porra é...
***
Nos recônditos do antigo edifício Joelma, Joaquim se vira, lançando mão de uma coragem que ele mesmo desconhecia, certo de que se depararia com um monstro, prestes a devora-lo, ou uma entidade transparente, remetendo às ideias tradicionais sobre a forma do chamado fantasma. Todavia, ele nada vê. Apenas uma das janelas de vidro entreaberta, dando para a rua Santo Antônio. Atraído por uma força invisível, ele não resiste e segue até a janela no intuito de fechá-la.
Apoiando-se no beiral, Joaquim lança um breve olhar para a porta das escadas, cruzada por ele alguns minutos antes, agora, vendo claramente a mulher que havia rogado por auxílio, jovem, bela, trajando vestimentas de trabalho em uma repetição eterna de um dia no escritório, quando sua existência terrena fora encurtada de maneira não natural. O grito de horror e incredulidade se intensifica quando o espectro que fixava seu olhar, de forma densa, como um companheiro de carne e osso, se desloca em direção à parede, nela se perdendo, pouco antes de, horrorizado, o homem perder o restante da sanidade e equilíbrio, caindo para a morte. Uma queda involuntária, ao contrário das vítimas que lançaram-se para evitar uma morte muito pior em meio às labaredas e o calor extremo, assim como os indigentes presos no elevador, que para sempre seriam chamados apenas de “as 13 almas”.
Marcelo não veria a queda do corpo. Após subir até o corredor, encontraria a janela fechada, abrindo-a por instinto e percebendo o vigia envolto em uma poça de sangue, como um sudário rubro escorrendo pela calçada até a sarjeta da rua deserta. O Anhangabaú, local onde o Joelma havia sido erigido, significa na língua tupi-guarani “agua da face do diabo”, supostamente para os povos nativos, a água da região provocava doenças físicas e espirituais. Decerto, o teor profético de tal definição seria adequado ao descortinar do véu das décadas. Um constante ciclo de tragédias reiteradas. Agora, o prédio poderia se chamar “Praça da Bandeira”, mas sempre seria o Edifício Joelma”.
***
Em uma noite, meses após o acidente, ao menos foi essa a versão oficial, pois, evidentemente, Marcelo nunca contaria a ninguém o que viu nos circuitos de segurança, até porque, ele mesmo duvidava se, de fato, havia visto algo, o homem está só na portaria. O antigo relógio de bronze na parede marcava meia-noite; ouvindo um barulho que corta o silencio da sala, como se algo pesado fosse arrastado, o porteiro desvia o olhar dos ponteiros e os fixa no espelho do outro lado do recinto, certificando-se de que estava sozinho. Nada aparente, o medo pregando peças novamente, quando o som é distinguível e cada vez mais próximo, tornando-se um constante... toc...toc...toc...